Vapor Benjamim Guimarães apodrece em Minas

Até 2014, ele ainda fazia passeios curtos nos arredores de Pirapora, navegando da maneira original, ou seja, queimando lenha nas caldeiras em vez de combustível nos tanques.

Em 1913 o presidente do Brasil era o Marechal Hermes da Fonseca e a princesa Isabel ainda estava viva, bem como Santos Dumont, que mal havia acabado de inventar o avião. A Europa estava à beira de uma grande guerra mundial (a Primeira, não a Segunda, que só começaria 30 anos depois), e o naufrágio do Titanic, meses antes, ainda estava fresco nas manchetes dos jornais. 106 anos atrás, os dirigíveis ainda voavam. E este barco já navegava.

O vapor Benjamim Guimarães, último barco movido a vapor do mundo, construído em 1913 no estado americano do Mississipi, e que, desde 1920, virou o mais ilustre habitante da cidade mineira de Pirapora, nas margens do Rio São Francisco, é uma testemunha viva da História. Mas está em vias de morrer também.

Há cinco anos, desde que parou de navegar por determinação da Marinha, o Benjamim Guimarães, mais antigo barco do Brasil, definha no porto de Pirapora, no Velho Chico, onde sempre foi a principal atração turística e histórica da cidade.

“Ele não tem mais nenhuma condição de navegar”, lamenta o vice-prefeito da cidade, Orlando Pereira. “Seu casco está totalmente comprometido e as madeiras, podres. Precisa de uma reforma urgente, mas o governo do estado, que deveria ter liberado verba para isso, não o fez. E nem sei se irá fazer”, acrescenta.

Esta é a segunda vez que o velho vapor se vê abandonado e entregue à própria sorte. A primeira foi em 1986, quando ficou duas décadas apodrecendo ao relento, até que a prefeitura de Pirapora conseguiu evitar o pior e o restaurou a tempo. Em seguida, ele foi transformado em “Patrimônio Histórico” – o primeiro barco brasileiro a receber tal honraria. Mas foi justamente aí que começaram os problemas — porque, sendo “Patrimônio Histórico”, qualquer intervenção no barco depende de intermináveis projetos e procedimentos burocráticos, sem contar que a verba para isso precisa vir do governo de Minas Gerais, que, como se sabe, está quebrado.

“O antigo governador havia prometido recursos para o Iepha – Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais coordenar a restauração do barco, mas deixou o cargo sem fazer isso”, diz Orlando. “E nem se tivesse esse dinheiro o nosso município poderia bancar a reforma, porque, como o barco foi tombado, só o Iepha pode cuidar dele”.

Para os ribeirinhos do Rio São Francisco no trecho entre Minas Gerais e Bahia, o Benjamim Guimarães é muito mais que um simples barco – é uma espécie de membro da família, porque, um dia, todos os seus antecedentes viajaram ou dependeram dele. No passado, o “Vapor”, como o barco carinhosamente é chamado até hoje, era o único elo da região com o resto do mundo. “Sair ou chegar, só quando o Benjamim aportar”, era a máxima do lugar.

Em Pirapora, não há casa que não tenha uma foto do Benjamim Guimarães na parede e o orgulho pelo barco está estampado até no brasão da cidade, que ostenta uma âncora, embora fique em pleno sertão de Minas Gerais – que, como também se sabe, não tem mar. “O Benjamim é um barco com alma”, dizem os moradores mais antigos da cidade.

Até 2014, ele ainda fazia passeios curtos nos arredores de Pirapora, navegando da maneira original, ou seja, queimando lenha nas caldeiras em vez de combustível nos tanques, ao contrário dos demais “vapores” que restaram no mundo (no próprio Rio Mississipi, inclusive), todos já convertidos para motores a diesel.

Quando em movimento, seu timão exigia a força de dois homens, os comandos de acelerar ou reduzir a velocidade eram passados ao operador da casa de máquinas por meio de uma engenhoca pré-histórica chamada “telégrafo” (que tinha esse nome porque tocava um sino todas as vezes que um ponteiro apontava a nova ordem), e o caldeirista precisa ficar alimentando a fornalha o tempo todo, com pesadas toras de madeira. Era um trabalho duro e braçal. Mas ninguém reclamava. Pelo contrário, toda a tripulação sentia imenso orgulho em fazê-lo, porque sabiam que eram os últimos guardiões de uma arte prestes a sumir do mapa.

Na água, só se ouvia o “rom-rom-rom” da grande pá de madeira girando lentamente sobre o rio e o “shhhh” do vapor saindo pelos orifícios do casco, feito uma Maria-Fumaça náutica. A velocidade não passava dos 15 km/h – mas quem haveria de ter pressa numa viagem de volta no tempo?. Na água, o Benjamim Guimarães parecia respirar. Mas, agora, ele não respira mais.

Seu estado foi ficando tão precário que a Capitania dos Portos do Rio São Francisco proibiu o transporte de passageiros, cinco anos atrás. Desde então, o vapor está parado na margem do rio, com a ferrugem corroendo seu casco e o capim do barranco praticamente envolvendo o barco. “É uma lástima”, resume o vice-prefeito de Pirapora. “Não há outro igual no mundo”.

Sob o ponto de vista histórico, o velho vapor de Minas Gerais só encontra paralelo em pouquíssimas embarcações mundo afora, mas todas já foram parar em museus.

única exceção é um antigo navio alemão da Primeira Guerra Mundial que, mesmo com mais de 100 anos de uso, ainda navega normalmente em um grande lago no interior da África, levando e trazendo passageiros. É o MV Liemba, que chegou a afundar, mas foi resgatado e, no passado, também foi movido a vapor, como o Benjamim Guimarães.

Por: Jorge de Souza/Uol

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